segunda-feira, 5 de dezembro de 2016

Não-Coisa (Ferreira Gullar)


O que o poeta quer dizer 
no discurso não cabe 
e se o diz é pra saber 
o que ainda não sabe. 

Uma fruta uma flor
um odor que relume... 
Como dizer o sabor,
seu clarão seu perfume

Como enfim traduzir
na lógica do ouvido
o que na coisa é coisa 
e que não tem sentido? 

A linguagem dispõe
de conceitos, de nomes 
mas o gosto da fruta 
só o sabes se a comes 

só o sabes no corpo
o sabor que assimilas 
e que na boca é festa 

de saliva e papilas 
invadindo-te inteiro 
tal do mar o marulho 
e que a fala submerge 
e reduz a um barulho,

um tumulto de vozes 
de gozos, de espasmos, 
vertiginoso e pleno 
como são os orgasmos 

No entanto, o poeta 
desafia o impossível 
e tenta no poema 
dizer o indizível

subverte a sintaxe 
implode a fala, ousa 
incutir na linguagem 
densidade de coisa 
sem permitir, porém,
que perca a transparência 
já que a coisa é fechada 
à humana consciência.

O que o poeta faz
mais do que mencioná-la
é torná-la aparência
pura - e iluminá-la.

Toda coisa tem peso:
uma noite em seu centro.
O poema é uma coisa
que não tem nada dentro,

a não ser o ressoar
de uma imprecisa voz
que não quer se apagar
— essa voz somos nós.

Poema extraído dos “Cadernos de Literatura Brasileira”, editados pelo Instituto Moreira Salles - São Paulo, nº 6, setembro de 1998, pág. 77.

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